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Coluna de Opinião

Um faroeste com Zeca Pagodinho

por Daniel Baz

26/01/2025 15h45
Por: Redação
Um faroeste com Zeca Pagodinho

Desisto de caminhar ouvindo música. Já faz tempo que preparei uma seleção de canções para me ajudar nestes momentos de intenso esforço e cansaço. Escolhi alguns tons leves para o aquecimento, uma seleção consistente para embalar os tirões na metade do percurso, uns hits energéticos para o último impulso. Ocorre que não quero o tédio diário de ouvir sempre as mesmas canções na mesma sequência, então coloco a playlist na ordem aleatória e, como se esquecesse que o mundo é dominado pelo caos, esta força imprevisível e sinistra que rege a natureza e criou do candiru à constelação de Órion, confio que a apresentação das músicas seja minimamente apropriada ao trajeto.

 E, vejam bem, entendo que não é possível existir sempre sincronia entre o momento da caminhada e as melodias arbitrárias que selecionei, mas o streaming parece escolher, de propósito, sempre a pior música possível para os trechos do percurso. Por exemplo, estou me alongando. Espero escutar algo ameno, que me injete umas primeiras forças e me anime de forma gradual para o resto do exercício. Algo que aqueça meus músculos aos poucos e me garanta um início sem muitos percalços. As opções são muitas: um samba do Casuarina, um rock dos Mutantes, um sucesso do Daftpunk.

Meu celular começa a tocar Sepultura.

Acreditem. Não há Pilates que resolva os danos causados por ouvir “Roots bloody roots” no volume máximo, enquanto se tenta esticar calmamente os tendões e acalentar as panturrilhas.

Aí ando os primeiros dez minutos. Preciso agora de algo para manter o ritmo, mas que ainda não me exija muito. Penso em Strokes, Gilberto Gil, Louis Armstrong, qualquer alternativa dentro do vasto repertório de músicas fagueiras das quais eu gosto.

Dos fones, ecoa "Racionais MC’s - Diário de um detento."

Em seguida, me preparo para correr alguns minutos. É a hora de ouvir um Ramones, um Jorge Ben, um Motörhead, um Di Melo.

Toca “O mundo é o moinho”.

Canso e espero alguma balada pra me confortar na porção final do exercício ou até mesmo algo mais íntimo que me ampare neste instante de baixo rendimento. Aceito muita coisa. De Billie Eilish a Vitor Ramil; de Radiohead a João Gilberto.

Ouço “Like a virgin”.

Entenderam? É com este desequilíbrio que convivo diariamente. Às vezes, acho que minha vida é um espetáculo de quinta categoria, em que há sempre uma tirada cômica forçada sucedendo um dramalhão barato. Tropeço numa pedra. Começa a tocar “O que será (à flor da pele)?”. Só quem já catou cavaco ouvindo o falsete do Milton Nascimento sabe o que é tragicomédia.

Para piorar, há também uma dissincronia entre a trilha que meus fones produzem e a paisagem ao redor. Aguardo para atravessar uma avenida movimentada. Espero o fluxo dos carros, movendo os pés sem sair do lugar para não perder o pique. É o momento de ouvir, quem sabe, um rock progressivo. São muitas as possibilidades gravadas na memória do aparelho: “Time”, do Pink Floyd, “Tom Sawyer”, do Rush, “Roundabout”, do Yes. O Spotify me vem com Raça Negra. Uma vez, durante o exercício, assisti a um cachorro fazer cocô com as pernas trêmulas e o olhar assustado, enquanto ouvia a “Toccata em dó maior”, do Schumann.

E, se não bastassem todas estas desarmonias, quando há sincronia, esta vem na forma de paródia. Um corredor com o dobro dos meus músculos, o triplo da minha velocidade e a metade da minha idade me ultrapassa. Dos fones, retumba “Eye of the tiger”. Quero manter o pouco da dignidade que me resta, apresso o passo e sinto taquicardia ao som de “Total eclipse of the heart”. Sem falar na vez em que terminei uma corrida mais exigente, com falta de ar e vertigens, enquanto meu celular reproduzia um podcast de True crime.

Respondam-me então: de que me adiantam os exercícios, se vivo neste constante estresse? Como convencer meus médicos que, se a pressão e a glicose seguem disparadas é por conta da trilha (aliás, já ouvi "Disparada", de Jair Rodrigues, sentado num baco de cimento enquanto esperava uma câimbra passar).

Os especialistas jamais acreditarão que me alimento bem e me exercito. O problema é o fundo musical. E todos sabem que a má escolha da trilha estraga qualquer filme. O que seria de Leone sem Morricone? Hitchcok sem Herrmann? Spielberg sem Williams? Imaginem “Os embalos de sábado à noite” tendo, no lugar de Bee Gees, digamos, Joy Division? Ou “O guarda-costas” sem Whitney Houston, mas com Bob Dylan? Ou uma versão do “Apocalypse Now” em que sai Wagner e entra Abba? Pois minha vida vai indo nesta coisa desconjuntada, um musical esquizofrênico e sem ensaio, um faroeste em que toca Zeca Pagodinho ao fundo. Um filme de guerra ao som de “Hakuna Matata”. Um terror psicológico com Mamonas Assassinas no último volume.