Sexta, 14 de Fevereiro de 2025 14:21
26°

Tempo limpo

Rio Grande, RS

Dólar com.

R$ 5,72

Euro

R$ 6,01

Peso Arg.

R$ 0,01

Coluna de Opinião

Uma chance de poça ou de fogueira

por Daniel Baz

12/01/2025 19h28
Por: Redação
Uma chance de poça ou de fogueira

Na frente da prefeitura de Rio Grande, esperamos que Darlene, nossa prefeita recém-eleita, apareça. A Lu, minha companheira, batuca e entoa canções de resistência em meio a um coletivo de mulheres. Chegamos na Praça Xavier Ferreira às 16h para a celebração da posse. Já são 17h30 e, nesta altura, não sabemos que Darlene só aparecerá às 20h. Portanto, preencho o tempo com o que mais gosto de fazer quando me encontro em grandes grupos: observar.

 Ao meu redor, estão cidadãos de todo tipo. Aliás, me impressiona que toda esta gente diferente esteja aqui para ver a mesma pessoa, a primeira prefeita da nossa cidade. A pré-adolescente de tranças e camiseta do Nirvana e o senhor de cabelos grisalhos, óculos escuros e um Frutare na mão. A mulher de quarenta anos que parece ter saído do núcleo rico de uma novela das oito e o cabeludo sem camisa que veio direto de uma capa do Grateful Dead.

Eu tento entender o que alguns destes grupos conversam, mas só consigo captar pedaços de assuntos. Uma senhora de muletas fala da possibilidade de chuva em torno das 20h; uma jovem tatuada reclama da ressaca do dia anterior e pede um Dorflex aos amigos; um homem negro, de boné pra trás, corrente prateada no pescoço e latão na mão, reclama que deveria ter trazido uma cadeira de praia; outro diz ao amigo que não pode se demorar muito, pois seu cachorro Mickey está doente. Não consigo ouvir o final de nenhuma dessas conversas. Jamais saberei se o Mickey se recuperou ou se o Dorflex foi recebido e esta constatação me deixa ressentido. Percebo a superficialidade naquela coexistência provisória.

Até que algo rouba minha atenção. Ao meu lado, param uma mãe e a filha de quatro ou cinco anos. Eu olho para a guria. Cabelo comprido, sandália rosa, bermuda branca, traje leve e claro, tudo escolhido a dedo para a ocasião. Então, quando a mãe diz “Não vai te sujar, hein!”, eu já sei que é um pleonasmo. A mulher encontra um conhecido e começa a conversar. Aproveitando que o adulto responsável se distraiu, a guria se põe de cócoras e começa a inspecionar o calçamento com os olhos e as mãos.

Eu, o adulto irresponsável mais próximo, observo sem que ela perceba. Vendo-a passar os dedos nas rugas do calçamento e nos matos que dele emergem lembro de quando eu também tinha esta intimidade com o chão e enxergava com as mãos e pés. Recordo-me da minha infância e a experiência de ouvir o coro das pedras, visitar o país dos pequenos animais, ler a memória do sol no cheiro do capim. Na idade dela, eu também sabia que o chão é nosso único destino seguro, terreno em que há sempre uma chance de poça ou de fogueira. Aliás, deve dizer algo sobre a nossa sociedade o fato de, com o passar dos anos, nos desconectarmos cada vez mais de onde pisamos. Mesmo que já tenhamos percebido que cá em cima não há nada de real interesse para nós, tudo ao redor demanda insistentemente que tenhamos a cabeça erguida e a coluna empertigada. Então, só nos resta ficar retos, altivos e exilados de vez da terra. Daí para querer acabar com tudo que vem dela é um passo. Em falso, no caso.

 Bem, versada nos idiomas do solo, a guria logo percebe um paralelepípedo frouxo no calçamento. Após conferir que a mãe seguia entretida na conversa, começa a arrancar o grande bloco de pedra com as duas mãos, em esforço que contorce seu corpo inteiro. E o que ela encontra a faz sorrir com entusiasmo: terra. Areia branca, fofa e solta sob o bloco de granito. Sem hesitar, enfia as duas mãos naquele tesouro granulado, moldando formas nas palmas pequenas que, aos olhos de um adulto, se desfaziam continuamente em esforço inútil, mas, para a percepção de uma criança, renasciam em novos mundos, promessas telúricas de chãos até então impossíveis.

 Conforme escava e molda, percebo que aquela guria, se quisesse, poderia fazer uma rua, um bairro, uma cidade do começo ao fim. Se lhe dessem tempo, seria capaz de fundar, naquela porção de terra, uma pátria inteira, na qual Alexandre repousaria descansado e satisfeito e Borges escreveria todos os livros. Mas ela sabe que esculpir o solo envolve o encontro de três vontades, a dela, a da pedra e a da areia, então ela improvisa. Atira fragmentos do chão para o lado, joga punhados sobre a bermuda branca, cheira os torrões entre os dedos. Faz até feição de comê-los, mas desiste na hora da bocada.

Em seguida, cava mais fundo. Tanto que eu posso sentir sua mão penetrando a história. Tateando as rochas que os pés dos nossos ancestrais mastigaram e que agora pavimentam nossa memória. A areia que manchou as calças deles no passado e hoje escorre por nossos sonhos. Seu braço desce até os ombros. Até desaparecer nos mitos. Seu ouvido toca o chão e ela deita no granito. Seus cabelos reencarnam-se em raízes. Está extática. Eu sinto que, por aquele buraco, ela toca o vento primeiro que cuspiu as dunas e descabelou o nosso raciocínio. A poça que refletiu nossa fome originária e a fogueira que aqueceu nosso cansaço primevo. Então, a mãe a vê. Com um puxão furioso e algumas palavras agressivas, ela pega a pequena do braço e ambas somem pela General Neto. Eu reprimo o desejo de gritar àquela guria o que ela acabou de me ensinar. Que, dos nossos pátios aos nossos túmulos, tudo é areia e pedra. Movência e monumento. Improviso e legado.

Não demora muito, Darlene cruza a rua em direção ao cais, acompanhada das mulheres que seguem entoando canções sobre igualdade e revolução. A chuva cai às 20h em ponto e eu seguro o choro. Movência e monumento. Alguém erra a letra de um refrão e um cachorro late sobre o horizonte. Improviso e legado. Distraio-me novamente ouvindo fragmentos de conversas e, antes de sumir em meio à população, compreendo que nossa coexistência nada tem de superficial. É sobre a fundura do chão comum que ela se sustenta e avança.