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Coluna de Opinião

Desigualdade de gênero mata

por Ana Paula D'Avila

17/11/2024 12h14 Atualizada há 2 meses
Por: Redação
Desigualdade de gênero mata

Segundo dados do 18º Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2024) [1], a violência de gênero cresceu em todas as modalidades: agressões decorrentes de violência doméstica, stalking (perseguição), ameaças, violência psicológica, tentativa de homicídio contra mulheres, tentativa de feminicídio, violência sexual, estupro e feminicídio.

Na lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006) [2] estão previstos cinco tipos de violência doméstica e familiar: física, psicológica, moral e sexual. Além da violência física, que compreende qualquer conduta que ofenda a integridade ou saúde corporal da mulher, os outros tipos compreendem: a violência psicológica, conforme citado acima, ocorre quando há um ato que ridiculariza, humilha, ameaça ou persegue, distorce e omite fatos para deixar a mulher em dúvida sobre a sua memória e sanidade (gaslighting), etc. A violência sexual, compreende o estupro, impedir o uso de métodos contraceptivos ou forçar a mulher a abortar, etc. A violência patrimonial, é a situação em que há controle do dinheiro, destruição dos teus objetos, deixar de pagar pensão alimentícia, esconder documentos pessoais, oculta bens ou recursos, etc. E a violência moral consiste em acusar a mulher de traição, expor a vida íntima, desvalorizar a vítima pelo seu modo de se vestir, etc.

A lei da Maria da Penha foi sancionada em 2006, depois de muita luta de Maria da Penha Maia Fernandes para que seu agressor e marido viesse a ser condenado pelas violências que a submeteu. Essa lei deu visibilidade a um espaço de poder pouco evidenciado até então, o espaço doméstico no qual geralmente as mulheres estão em condições desvantajosas em relação aos homens. Essa lei é considerada uma das mais avançadas do mundo e criou os Juizados especializados no tema, as medidas protetivas de urgência, entre outras questões que propiciam visibilidade ao problema do gênero no país.

Quando falamos de gênero queremos dizer que, não é possível que a diferença existente entre homens e mulheres impacte e determine a distribuição de tarefas na casa, o cuidado com os filhos, o acesso a salários iguais, o acesso a representação na política institucional, o que vestir e etc., e que isso seja considerado como natural, dado. Em se tratando de sociedade, diversos estudos apontam que essas diferenças fundam desigualdades que servem para justificar a subordinação, as injustiças e as violências sofridas pelas mulheres em relação aos homens. Ou seja, no decorrer do desenvolvimento do capitalismo existe a conformação de certos lugares para homens e mulheres na sociedade, como os homens estão na esfera pública em maior proporção, seja ocupando postos de trabalho com altos salários, posições políticas, culturais e etc., a sociedade tende a ser organizada de acordo com os seus valores, crenças e interesses, os quais vão estruturando relações de poder desiguais.

 No contexto de múltiplas desigualdades, como é o caso brasileiro, aquela que se refere ao gênero assume consequências extremadas, como são os casos de violência que resultam em feminicídio.

No caso de feminicídio, que é o crime contra a mulher em razão da sua condição de gênero, houveram 1.467 vítimas no país no último ano (2023), segundo o 18º Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2024). Quando buscamos o perfil dessas mulheres, temos que a maioria é negra (63,6%), tem entre 18 e 44 anos (71,1%) e foram mortas na própria casa (64,3%), sendo que 90% dos feminicídios são cometidos por homens. Quem mata as mulheres são os parceiros íntimos (63%), o ex-parceiro íntimo (21,2%) e um familiar (8,7%). Embora os números sejam alarmantes, é possível que eles sejam muito maiores, porque muitas vítimas de feminicídio não são contabilizadas.

Ao nos determos sobre os dados temos que refletir que o feminicídio é um crime de ódio as mulheres, que são tratadas como posse. Até chegar à consumação do feminicídio, essas mulheres sofreram muitas violências.

Em uma breve pesquisa nos veículos de mídia sobre os casos de feminicídio em Rio Grande e região, vimos que somente no ano de 2024, temos os seguintes casos: Em março de 2024 um homem foi condenado a 32 anos de prisão, na cidade de São Lourenço do Sul por ter, em 2020, matado a própria amante, porque ela não queria mais a relação; ainda no mesmo mês, mas no município de Rio Grande, um homem foi preso por tentativa de feminicídio no bairro Cidade Nova;  Em julho de 2024, em São Lourenço, um homem foi condenado a 39 anos de prisão pelo feminicídio da ex-companheira; Em outubro de 2024, no município de São José do Norte, a polícia civil prendeu em flagrante um homem pelo crime de feminicídio da companheira. Ainda no mesmo mês, um homem foi condenado a mais de 18 anos de prisão por tentativa de feminicídio contra a ex-companheira na Vila da Quinta (5º Distrito de Rio Grande). E em Pelotas, um homem foi condenado a 32 anos e 10 meses de prisão por tentativa de feminicídio contra a ex-companheira [3].

No Brasil, esse crime foi tipificado em 2015 pela lei 13.104 [4] pela então presidenta Dilma Rousseff, estabelecendo pena de 6 meses a 20 anos de prisão no caso de crime homicídio simples, e o de feminicídio como um homicídio qualificado, com pena de 12 a 30 anos de prisão. A tipificação foi importante porque além de reconhecer a desigualdade de gênero existente na nossa sociedade, ao mesmo tempo propicia instrumentos legais que punam os agressores, além de evidenciar a importância do papel estatal nessas questões. Os dados do 18º anuário Brasileiro de Segurança Pública, apontam que em 2023 ocorreu o maior número de casos desde a sanção da lei.

Apesar da importância dessa lei, os casos têm aumentado tanto que em outubro de 2023, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a lei 14.717 [5], que garante o pagamento de pensão aos órfãos de mulheres que foram vítimas de feminicídio, com renda familiar per capita que seja igual ou inferior a ¼ do salário mínimo. O benefício de prestação continuada no valor de R$ 1.320,00 deverá ser dividido entre os filhos menores de 18 anos. Embora não apague a violência e as marcas deixadas nos filhos e filhas, esse benefício é uma reparação do Estado e propicia um suporte financeiro à família. Ainda falando sobre a importância do papel estatal, a lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006) completou 18 anos, e em agosto de 2024, a ministra das Mulheres, Cida Gonçalves, lançou a campanha “Feminicídio Zero – nenhuma violência contra a mulher” com o objetivo de conscientizar a população.

A violência contra a mulher é fruto do sexismo, de relações de poder e dominação que historicamente colocaram os homens em situação de privilégio na sociedade. Por isso, ao falarmos de feminicídio estamos tratando de uma relação de poder. É o sexismo, e a consequente desigualdade de gênero, que inferioriza as mulheres e as mantêm em condição subalterna aos homens, se trata de um fenômeno global, mas no Brasil assume um perfil determinado.

Além disso, são mulheres negras que historicamente sofrem com diversas violências nesse país. Assim, ao analisar brevemente os dados e constatarmos o perfil é importante não tomar a violência de gênero como algo homogêneo, ou ainda tomando como padrão a violência experienciada por um grupo historicamente privilegiado, como é o branco, em detrimento da população não-branca [6].  Embora mulheres brancas também sejam vítimas de feminicídio o perfil apontado, estatisticamente, é de mulheres negras. Conforme bell hooks (2019) [7], é importante pensar as opressões de maneira não hegemônica: “Como grupo, as mulheres negras estão numa posição peculiar na sociedade, não apenas porque, em termos coletivos, estamos na base da pirâmide ocupacional, mas também porque o nosso status social é inferior ao de qualquer outro grupo” (hooks, 2019, 45). Por isso, é importante entender o feminicídio também a partir da interseccionalidade, quer dizer, o perfil de quem sofre mais opressão e violência está ligada a raça, classe e gênero. Nesse caso, o racismo também é outra fonte de opressão que pesa contra as mulheres negras.

Compreender que, em se tratando de sociedade, não existe nada que seja natural é o primeiro passo para desconstruir estereótipos e papeis estabelecidos pelo sexismo, pelas relações de classe e pelo racismo, no decorrer do tempo. Para hooks (2019), a opressão sexista é a base de todas as outras opressões e também é o tipo de dominação que as pessoas experimentam já no espaço doméstico, ou seja, na família. Enquanto o racismo e a luta de classe tendem a ser vivenciados na sociedade. Essas questões passam pela educação, mas como envolvem relações de poder historicamente constituídas, também são objeto de disputa. Lutar por um país menos desigual também envolve lutar pelo direito de viver das mulheres, e considerando o perfil do feminicídio discutido brevemente acima, o direito de viver das mulheres negras. É somente através da disputa com setores hegemônicos que podemos promover a transformação que proporcione dignidade a todas nós.

A denúncia dos casos de violência pode ser feita, de forma anônima, ligando para o 180.

 

Referências:

1.    ANUÁRIO BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. 18º Anuário Brasileiro de Segurança Pública. São Paulo: Fórum brasileiro de segurança pública (FBSP), 2024. Disponível em: https://apidspace.forumseguranca.org.br/server/api/core/bitstreams/1d896734-f7da-46a7-9b23-906b6df3e11b/content Acesso em: 1 nov. 2024.

2.    BRASIL. Lei Nº 11.340 de 7 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8o do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências. Diário Oficial da União. Seção 1, p. 1. Brasília, DF. 08 ago. 2006. Disponível em: https://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?jornal=1&pagina=1&data=08/08/2006&totalArquivos=56

3.    O litorâneo. https://www.olitoraneo.com.br/buscarfeminicídio

4.    BRASIL. Lei nº 13.104, de 9 de março de 2015. Altera o art. 121 do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, para prever o feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio, e o art. 1o da Lei no 8.072, de 25 de julho de 1990, para incluir o feminicídio no rol dos crimes hediondos. Diário Oficial da União. Seção 1, p.1. Brasília, DF. 10 mar. 2015. Disponível em: https://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?jornal=1&pagina=1&data=10/03/2015

5.    BRASIL. Lei nº 14.717 de 31 de outubro de 2023. Institui pensão especial aos filhos e dependentes crianças ou adolescentes, órfãos em razão do crime de feminicídio tipificado no inciso VI do § 2º do art. 121 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), cuja renda familiar mensal per capita seja igual ou inferior a 1/4 (um quarto) do salário mínimo. Diário Oficial da União. Seção 1, p. 1. Brasília, DF. 01 nov. 2023. Disponível em: https://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?jornal=515&pagina=1&data=01/11/2023&totalArquivos=225

6.    SALGADO, Amanda Bessoni Boudoux. Violência feminicida: uma abordagem interseccional a partir de gênero e raça. Revista de Gênero, Sexualidade e Direito.  Brasília, v. 3, nº 1, pp. 37-57. Jan/Jun. 2017.

7.    hooks, Bell. Teoria feminista: da margem ao centro. (Palavras negras) São Paulo: Perspectiva, 2019.

*Ana Paula é Rio-grandina. Licenciada em Ciências Sociais (UFPel), mestra em Ciências Sociais (UFPel), doutora em Sociologia pela UFPR com período de estágio realizado na Universidade de Coimbra/Portugal. Pós-Doutora em Sociologia (UFPel). Autora do livro: “À deriva da maré: padrões de desenvolvimento e trabalho no Polo Naval de Rio Grande

 

*As opiniões e imagens publicadas neste artigo são de inteira responsabilidade dos autores, colunistas e cronistas, não refletindo necessariamente a opinião do grupo editorial responsável pelo Camareu