"Como já tenho dito, não há aqui nascentes nem fontes de água doce, mas atrás da cidade, entre montículos de areia (em lugar denominado Geribanda), cavaram-se poços, onde a pequena profundidade se encontra muito boa água. Os negros vão buscá-la em barris e retiram-na do poço com chifres de bois, no meio dos quais é introduzida uma vara comprida, instrumento que eles chamam de guampa."
(Auguste de Saint-Hilaire, 1821)
Um duelo de capoeira. Dois homens negros. Um deles escravizado. O outro, liberto. A celeuma começa, segundo relatos, após um deles derrubar o barril de água do outro. O homem liberto (Alexandre de Souza), que teve seu barril derrubado, e o homem escravizado (Bernardo, propriedade de Manoel José Correa de Sá) se desentendem. Bernardo desafia Alexandre para um duelo, “mano a mano”, pela capoeira. No meio da luta, Alexandre dá uma facada em Bernardo. Bernardo morre.
O fato remonta ao dia 31 de abril de 1850, aqui em Rio Grande, cidade mais antiga do estado do Rio Grande do Sul, que começa a sua ocupação e formação em 1737. A ocupação por parte dos europeus começa através de uma incursão militar, na incumbência de construir um presídio - forte, afim de dar continuidade na possessão destas terras mais ao sul para o controle da Coroa Portuguesa. O território que atualmente está o Rio Grande do Sul, era território indígena como a maior parte do território brasileiro colonizado. Antes da ocupação europeia, essas terras estavam “encharcadas” de populações e culturas indígenas. É importante imaginar isso quando pensamos nesse território.
Voltando ao fato ocorrido em 1850, gostaria de lembrar que o aglomerado urbano do nosso atual município, já tinha passado por um momento como Forte Jesus-Maria -José (1737), Vila de Rio Grande de São Pedro (1751) e já era, desde 1835, Cidade de Rio Grande. Rio Grande fazia parte da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul, uma das províncias do Império do Brasil. Por isso, a região já contava com um grande número de mulheres e homens negros (africanos e brasileiros) escravizados, que a eram a principal mão de obra das atividades portuárias, comerciais, rurais e domésticas. Pelo fato de que a Companhia Hidráulica Rio-grandense ter sido criada somente em 1872, o abastecimento de água por canos nas moradias, demorou para ser uma realidade. Nesse ínterim, boa parte do trabalho executado pelos escravizados era o de abastecer moradias e logradouros com água (os aguadeiros). Seja para consumo, para higiene pessoal ou para limpeza das casas e de suas roupas.
Mas qual a relação disto com o fato violento entre Alexandre e Bernardo? Pois bem, lembrando que o início do conflito se deu por conta de um barril de água que foi derrubado, o duelo entre os capoeiristas que teve um infeliz desfecho, aconteceu em um local muito importante na cidade do Rio Grande que se chamava Geribanda ou Praça da Geribanda. Esse local se caracterizava como um espaço público, onde trabalhadores (na sua boa parte negros) comercializavam comida, lavavam roupas (nas águas que se acumulavam ao redor), faziam transporte com suas carroças ou retiravam água das cacimbas, uma espécie de poços artesianos que foram abertos na Geribanda para a retirada de água para consumo dos munícipes, levando em consideração, a força hidráulica que havia nesse lençol freático.
Geribanda é um termo popular que significa “tumulto”, “confusão” ou até mesmo uma manifestação cultural com muito barulho e algazarra. Logicamente que no caso do Brasil, esse termo vai tomando outros sentidos e significados segundo as suas regiões, mas o que conseguimos compreender da Geribanda em Rio Grande, é que era usado para falar de um local povoado e frequentado por pessoas consideradas menos importante. Ou seja, um território de pessoas pobres, trabalhadoras, negras, escravizadas, estrangeiras e/ou que viviam em situações de extrema vulnerabilidade e injustiça social e econômica naquela época. Não era um local frequentado pela elite, pelo que se saiba, mas era o local de encontro e concentração de quem fazia a cidade existir e acontecer. Era um local de concentração de quem executava as atividades mais servis que existia.
Segundo a oralidade, na Geribanda era comum durante um certo tempo, ver as mulheres escravizadas ou em situação análoga, lavarem roupas nas poças de água que se formavam nesta antiga praça. O naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire (1779 – 1853), que viajou por essas bandas, relata que na Geribanda, era o púnico local para se encontrar “água boa”, e quem exercia essa atividade eram os homens negros.
Pensar na Geribanda é pensar e ser transportado para um espaço e tempo em que a população de Rio Grande para além de suas atividades servis, exerciam a sua vivência de forma ampla. O espaço da Geribanda, era o espaço em que o povo vivia a sua cultura. A população, que vivia e sobrevivia nesse lugar, também tinha sua forma de compreender o mundo, suas formas de interagir com o outro, suas espiritualidades e suas formas de se manifestar. O duelo de capoeira que terminou em um assassinato, também me leva a refletir sobre isso. A capoeira, como manifestação cultural vinda de África e utilizada como resistência cultural da população negra, por muito tempo foi criminalizada e proibida, mesmo assim, sua prática era extremamente importante e real entre a população.
Certamente que, ao se falar de Rio Grande, sempre falamos (e os monumentos oficiais servem muito para isso) de seus corajosos homens brancos e militares, que desbravaram, ocuparam e trouxeram o progresso para essa terra desocupada. Portanto, esquecemos (porque foi e é apagado) das milhares de pessoas indígenas que viviam nessa região, e principalmente, de gente que foi trazida da África e de outros lugares para serem escravizadas por aqui. Toda essa gente, que foi apagada e silenciada da História, construiu e foi fundamental na construção da vida, do cotidiano e da cultura do nosso povo. Como escreveu o filósofo Walter Benjamin (1892 – 1940), o os ditos “patrimônios” ou “monumentos” oficiais são sempre um símbolo da violência e da dominação de um povo contra os demais.
A Geribanda foi transformada anos depois na Praça Tamandaré. Mas não foi de uma hora para outra, foi um processo lento e devagar, entre a segunda metade do século XIX e início do século XX. Se antes era um espaço de concentração do povo mais vulnerável, negro e pobre, aos poucos o terreno foi sendo aterrado, repaginado, foram construídos lagos em um lado, alguns bustos de “vultos históricos” no outro até que seja batizada pelo nome de algum herói desta frágil república que nasceu com um golpe militar.
Anos depois, no ano de 2015, escavações e estudos arqueológicos realizados na Praça Tamandaré (Ministério Público e IPHAN embargaram as obras da nova estação rodoviária), foram encontrados inúmeros vestígios da vida que aconteceu nesse espaço público, no passado. Foram encontrados materiais arqueológicos em vidro, cerâmica, louça, metal, couro, madeira e ossos (de animais e humanos). Dentre os que se destacam estão chaves, brinquedos de crianças, embalagens de alimentos, munição, sapatos, quartinhas (utensílio de servir orixás na religião afro-brasileira), pratos e algumas das antigas cacimbas para retirada de água.
Hoje, ao passar pela Praça Tamandaré e vendo a minha gente que vende de tudo, que caminha, que sai e entra dos ônibus, que enlouquece falando sozinha sentada no banco da praça, que joga dama, que varre a praça ou gente de uniforme de trabalho, sou remetido por um instante para o tempo da Geribanda, que ocupava o mesmo espaço, por gente muito simples, mas que foi imprescindível para a construção do que temos hoje. Olhando para as pessoas hoje, lembro daqueles do passado, que não conheci, mas que eram gente da capoeira, das carroças e das cacimbas. Gente de Rio Grande. Gente da Geribanda.
Samuel Ferreira
P.S. No último dia 06 de outubro, a maior parte da população do município de Rio Grande, elegeu a primeira mulher prefeita ao paço municipal. Após 287 anos de sua fundação,
APRS, Processos Crime, Rio Grande, Júri, Caixa 005-0418. Auto 19. Conflito ocorrido em 31/04/1850.
AMPRG, Câmara Municipal, Caixa 237. Relatório Trimestral remetido pelo fiscal Raimundo Rodrigues Vásquez à Câmara Municipal de Rio Grande, datado de 12/01/1853.
OLIVEIRA, Vinicius Pereira de. Sobre águas revoltas: cultura política maruja na cidade portuária de Rio Grande/RS (1835-1864). Tese (Doutorado em História) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2013.
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem ao Rio Grande do Sul. (1820-1821). São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1939
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