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Coluna de Opinião

O Brasil ainda está aqui

por Daniel Baz

03/03/2025 12h09
Por: Redação Fonte:
O Brasil ainda está aqui

Acho que já posso ser sincero com quem me lê: passei um bom tempo odiando o Brasil. Admitir isso não é fácil. Eu sempre amei nosso país, da arara azul a Zé Keti, da urna eletrônica a Guimarães Rosa. É óbvio que tinha ciência de todos os nossos problemas sociais, políticos e econômicos, mas dava alguma esperança pensar que, se tínhamos conseguido inventar o avião, o drible da vaca e o brigadeiro, poderíamos achar uma solução para qualquer mazela que nos afligisse e juntos nos tornar a Dinamarca da América do Sul, com o bônus de termos pão de queijo e feijoada. Era uma época em que, diante de cada problema produzido pela pátria, eu pensava logo: ora, se nos foi dada a sorte de ser o destino para tipos como Clarice Lispector e Gianfrancesco Guarnieri, e foi no nosso caldo cultural (e não no de Copenhague!) em que se temperaram “A paixão segundo G.H.” e “Eles não usam black-tie”, era só questão de tempo até concertarmos todos nossos problemas psicológicos e sociais.

Extraí muitas esperanças deste tipo de compensação. Ok, temos Arthur Duval. Mas vocês conhecem a história da Dandara? Sim, convivemos com Edir Macedo. Mas vocês já ouviram “O trenzinho do caipira”? Vivemos os terrores de uma ditadura militar. Mas também dançamos a Tropicália, assistimos ao Teatro Oficina, lemos as crônicas de Rubem Braga. Não me entendam mal. Uma coisa não anula a outra. Jamais. Ocorre apenas que, ao menos nas horas de maior desespero, era possível se amparar nestes pequenos acenos de que a civilização ainda estava entre nós, o que me permitia superar esta melancolia atávica que nos marca e engajar-me na construção de um país diferente, mais justo e tolerante. Depois, bastava colocar um Jorge Ben na vitrola e ver o sol nascer mais bonito.

Mas aí vieram mais acontecimentos difíceis de explicar. O golpe em Dilma Roussef. Os congelamentos na saúde e na educação. E, claro, a possibilidade, ainda lá em 2018, de termos um parasita com ares sociopatas no maior cargo do Executivo nacional. Foi Bolsonaro, claro, quem me fez desacreditar de vez no Brasil. Senti ódio da nossa população. Passei anos incuravelmente ressentido. Afinal, de que adiantaria Mano Brown no país de Paulo Guedes. Elza Soares no país do “Você não merece ser estuprada”. Carlos Drummond de Andrade no país do “Tá ok?”. Macunaíma no país da cloroquina?

Estas ambiguidades não eram aquelas boas com as quais eu estava acostumado, típicas de nossa país e que produziram Gregório de Matos, Sepultura e Glauber Rocha. Não, eram paradoxos responsáveis por matar milhares e deprimir os sobreviventes que ainda tinham alguma consciência sobre o que estava ocorrendo. Estávamos toda saúva e nenhuma saúde. Sem adubo para a “Rosa do povo”. Sem jardins para a borboleta amarela. Então, passei dias, meses, anos, rompido com o Brasil. Que se danasse o tamanduá-bandeira, o “Soneto de fidelidade” e os lençóis maranhenses. Não havia mais beleza possível por aqui.

Vivi tempos de intenso desgosto e indignação. Por que eu tinha de nascer neste país infernal abençoado por Feliciano e bonito só pra quem paga? Feliz era a galera da Noruega. Passei madrugadas pesquisando preços de terrenos na Nova Zelândia. Comecei um curso de mandarim. No meu histórico do Google, ainda é possível encontrar buscas do tipo “Como permutar professor federal brasileiro para instituto de ensino na suíça (sem referências)?” Eu estava carente de tudo. Ser brasileiro tornou-se uma experiência lacunar, escassa, omissa. A todo momento alguém nos tomava algo vital.

Aí, de uns tempos para cá, com sua manha genuína, a mesma que criou o samba e o açaí com leite Ninho, o Brasil começou a me acarinhar de novo. Lula voltou à presidência. Os assassinos de Marielle foram finalmente presos. Nossas atletas deram show nas Olimpíadas. Os golpistas começaram a ser responsabilizados. E, para coroar, nos últimos meses, a campanha pelo Oscar do ótimo filme “Ainda estou aqui”, encabeçada por Fernanda Torres. Está bem, se quero seguir sendo sincero com vocês, devo dizer que, como eu ainda estava machucado e o país sem muitos créditos, no começo fui cínico com o negócio todo. Ora, o Walter Salles é bilionário. O Rubens Paiva não representa o povo. E o que duas horas de filme resolvem num país com tanta coisa mais urgente pra tratar?

Aí eu fui ao cinema.

No dia seguinte ao de assistir à obra, dei por mim relendo um trecho do “Grande sertão: veredas”; outro do “Poema sujo”; reassistindo a “Deus e o diabo na terra do sol”; pedindo pra Alexa tocar “Roots”, “Sobrevivendo no inferno”, “Do cóccix até o pescoço”. Passaram-se horas, dias, semanas, em que um sorriso insistente me frequentava o canto da boca.

Depois de pensar muito a respeito do filme, acho que entendi o impacto inicial dele sobre mim. Suponho que ele resida no fato de Rubens Paiva ser uma força que se processa a partir do próprio desaparecimento. É a falta dele que impulsiona a atitude revolucionária de Eunice. Trata-se de uma lacuna eloquente. Ou seja, uma falta que não é vazia, mas carregada de sentido e propósito. Seu silenciamento renasce em eco indignado. A extrema violência sofrida por ele não o invisibiliza. Seu sumiço é imagem residual. Uma história de fantasmas para adultos. Sua ausência assombra personagens e espectadores e inquieta-nos a decidir entre uma tomada de posição ativa ou a morte verdadeira, a do esquecimento.

  Esta lógica é reproduzida no filme todo, mas me atingiu de um jeito particular pela escolha da trilha sonora. Diante do autoritarismo e da escassez de tudo, a arte grita: uns ouvem Tom Zé, outros deliram por Caetano e Gil, os créditos explodem com Erasmo Carlos. Então, hoje, um pouco mais otimista, no país em que ainda somos tão carentes de tanto, quero crer nestes símbolos. Da oportunidade de sobreviver e prevalecer apesar de tudo que nos tiram. Da revolução de fortalecer os afetos a partir da perda. Da dignidade de transformar carência em carícia. Para cada rapinagem de tipos como Bolsonaro, um dos melhores filmes do ano. Para cada depressão de tocaia nos dias difíceis, uma cena com Fernanda Torres incitando a gente a sorrir.