Diário do último cidadão em Rio Grande

09 de fevereiro de 2025 - Caros cassineiros, vocês me deram um grande susto. Saí de casa hoje para colocar o lixo na rua e vi a cidade deserta. Casas trancadas. Carros largados como se às pressas. Sacolas vazias perambulando nas esquinas. Andei por algum tempo pela Cidade Nova e percebi que não havia ninguém. As sinaleiras piscavam para nada. Os cães não tinham quem perseguir. Num primeiro momento, julguei que o Apocalipse, aquele tão anunciado pelas religiões, pelos cientistas, pelos profetas e pela Greta Thunberg, finalmente tinha se iniciado. Por impulso, agi inspirado nos clichês dos filmes: vedei minha roupa com silver tape, arranjei um taco de baseball, empilhei comida enlatada, até perceber que meu celular ainda tinha internet e que o mundo seguia normal. Não era o Apocalipse, enfim, que se abatera sobre Rio Grande. Vocês só estavam no Cassino. Então, já que sou o último rio-grandino na cidade, envio aos editores do Camareu notícias do que ocorreu aqui nos dias em que vocês se ausentaram (caso, claro, os editores do Camareu não esteja jogando frescobol e bebendo Heineken diante do navio Altair neste momento).

10 de fevereiro de 2025 - A cidade segue deserta. O ar está mais leve e a água mais clara. Os quero-queros estão cantando com mais frequência e mais alto. Não sei se é impressão minha, mas acho que estão também tentando falar outros verbos. À noite, os grilos se tornaram mais sonoros. Com as luzes apagadas é possível admirar as estrelas.

11 de fevereiro de 2025 - A avenida Portugal está sendo tomada pela vegetação. Nascem figueiras no cruzamento com a Caramuru e pés de pitanga na esquina com a 15 de Novembro. Um casal de bugios se instalou na academia a céu aberto próxima à Major Carlos Pinto. Uma caravana de capivaras chegou à General Neto e começou a invadir as lojas. Dei uns rolos de silver tape para elas em troca de transitar sem transtornos. Acho que vi um quero-quero com um volume de “Memórias póstumas de Brás Cubas” debaixo da asa. À noite, ouvi um grilo tentando reproduzir a melodia de “La vie en rose”.

12 de fevereiro de 2025 - Já não dá pra diferenciar a 24 de Maio da Estação do Taim. Uma família de leões-marinhos e um casal de baleias-jubarte vivem na orla da Henrique Pancada. A água do Canalete tornou-se potável. Os quero-queros estão aprendendo português. As capivaras da Neto assumiram o comércio local. A silver tape produzida por elas já é a terceira mais vendida do mundo. Na madrugada, um grupo de grilos ensaiava a “Cantata 147”, do Bach.

13 de fevereiro de 2025 - A Praça Tamandaré agora pertence às antas e aos tamanduás. Importante dizer que a Praça Tamandaré ocupa, neste momento, toda a extensão que vai da Bacelar até o Lar Gaúcho. Um grupo de golfinhos se instalou no Canalete e aceitaram que eu montasse neles em troca do meu taco de baseball. Os quero-queros aprenderam inglês e mandarim. As capivaras da Neto perceberam que o lucro da venda de silver tape não é distribuído igualmente entre todas elas. À noite, os grilos apresentaram “O anel dos nibelungos”, de Wagner, no Rincão da Cebola.

14 de fevereiro de 2025 - Recebi representantes da ONU. Ficaram impressionados com nossa cidade (e com o fato de eu estar montado em um golfinho). Eles afirmam que somos um exemplo de sustentabilidade para o mundo. Vancouver e Winnipeg já estudam nossos costumes. A OMS declarou que nosso ar é melhor que o da Islândia. A Nova Zelândia quer se mudar pro Bolacha. O Ailton Krenak comprou uma casa na Cohab IV. O Roger Waters está compondo um álbum triplo sobre a Vila São Miguel e já lançou o single “Another brick in Socoowski”. Um teórico da USP provou que os descendentes do sabiá do Gonçalves Dias vivem na Praça Xavier Ferreira. E a Praça Xavier Ferreira compreende, neste momento, toda a extensão da Vila Militar até a Junção. As capivaras da Neto tomaram os meios de produção das outras capivaras da Neto e distribuíram os produtos igualmente entre si. Os quero-queros organizaram sua primeira feira do livro.

15 de fevereiro de 2025 - Acabam de confirmar. Rio Grande sediará as próximas Olimpíadas, a Copa do Mundo e o Woodstock 2025 (a ocorrer no Largo Dr. Pio). O James Cameron já escreveu o roteiro de oito filmes da franquia “Avatar” ambientados na Ilha dos Marinheiros. A Greta Thunberg lançará um livro chamado “Papareias ou morte!” na Feira de Frankfurt. As capivaras da Neto apresentarão sua edição revisada e ampliada de “O Capital” no próximo Fórum Social Mundial. Um quero-quero rio-grandino, cujos livros foram traduzidos para 97 idiomas, é favorito ao Nobel de Literatura.

16 de fevereiro de 2025 - Caros cassineiros, aos poucos vocês estão voltando à cidade pela Avenida Itália. Espero que acreditem em tudo que escrevi, visto que, ao som da primeira buzina, os grilos emudeceram, as capivaras desapareceram pela Lagoa dos Patos, os quero-queros decidiram migrar de vez para Vancouver, e meu golfinho arrumou um emprego no Acqua Lokos (em função de gerência, segundo ele). De qualquer forma, deixarei para contar tudo a vocês pessoalmente, já que devem estar cheios de perguntas. Só não estranhem se eu, por precaução, os receber em uma roupa hermeticamente vedada pela terceira melhor silver tape do mundo e com um taco de baseball novo em uma das mãos.